A parceria entre tráfico, milícias e igrejas pentecostais na periferia do Rio de Janeiro é o foco dos estudos de duas décadas da socióloga Christina Vital Cunha, professora da Universidade Federal Fluminense. Para as milícias, diz a pesquisadora, as alianças representam uma “forma de demonstração de força para além do conteúdo espiritual, que emanam dessas aproximações criminosas nas redes religiosas”.
Na entrevista a seguir, a socióloga detalha essa relação e fala do distanciamento dos evangélicos da pauta progressista. “A vida social é feita de retração e expansão contextual. A questão da desigualdade social terá grande importância nas eleições. Se a segurança é uma pauta histórica da direita, tendo assumido centralidade em 2018, em 2022 o combate às desigualdades pode ser a pedra de toque.”
CartaCapital: Como nasceu a sintonia entre as milícias e a religião?
Christina Vital da Cunha: O que houve foi um crescimento paulatino de evangélicos, principalmente em favelas e periferias no Brasil. Os traficantes, pela influência direta de familiares, por suas passagens em presídios, aderiram às igrejas. Com os milicianos se observa um fenômeno similar. Grande parte é nascida e criada em localidades que têm seus valores morais fincados nas doutrinas pentecostais. Todos estão envoltos nesse mesmo universo. Mas a experiência de ser ou se identificar com um universo religioso e exercer atividade criminosa não é novo nem exclusivo em relação aos evangélicos. Há, inclusive, uma questão sociológica. Muitos tomam esse grupo religioso com uma moralidade superior. Os evangélicos apresentam-se como “santos”, biblicamente separados do mundo. Com essa interface política, midiática e posteriormente com o crime, ficou em suspenso, no entanto, muito daquilo que se projetava em relação ao grupo religioso.
CC: Na prática, como se dá essa relação?
CVC: Os milicianos normalmente absorvem esses valores morais em universos familiares, mas não tem, necessariamente, uma prática santa no sentido bíblico. Líderes religiosos valem-se dessa aproximação em termos financeiros, de aportes de recursos para suas igrejas, e em termos políticos. O que significa proveito em termos políticos? Muitas coisas. Uma delas diz respeito às disputas internas. Ou seja, há líderes evangélicos que fazem da conversão de traficantes e milicianos um capital na concorrência com outras denominações. Isso é muito corrente em relação aos pais e mães de santo. Quanto mais famosos, mais suas conversões são alardeadas e os testemunhos anunciados em faixas e cartazes para atrair o público sedento por escutar histórias de transformação.
“Para a igreja, a conversão significava a força da mensagem divina, assim como do próprio líder religioso”
CC: As denominações, pulverizadas em centenas de templos espalhados pelo Brasil, não podem servir de “lavanderia” para o dinheiro do tráfico?
CVC: Ouvi comentários sobre pastores que “esquentavam” dinheiro de traficantes para que esses saíssem da “vida do crime”. Assim, colocavam no nome próprio e de familiares do líder propriedades rurais, lojas e outros negócios como meio de viabilizar uma “nova vida” para seus liderados. No caso de milicianos, tal prática é desnecessária em vista de vários deles terem uma vida civil estável. Ou seja, gozam de ampla liberdade de movimentação financeira e circulação na cidade, diferentemente dos traficantes. As malhas legais possibilitam uma ampla circulação de milicianos. Com os traficantes é diferente: vários têm passagens no sistema penitenciário ou são fugitivos da Justiça.
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